093. Deus como Autor
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Briefing: A Analogia de Deus como Autor e o Problema do Mal
Sumário Executivo
Este documento sintetiza os principais temas de uma entrevista com Parker Settecase sobre a analogia teológica de Deus como autor do mundo. A discussão, baseada na tese de mestrado de Settecase orientada por Kevin Vanhooser, explora a utilidade dessa analogia para compreender a relação de Deus com o tempo, a encarnação e, principalmente, o problema do mal. A tese defende a analogia como uma teodiceia — uma explicação positiva para a existência do mal — e não apenas uma defesa.
O ponto central é que o modelo de “autoria dialógica” de Vanhooser, inspirado em Mikhail Bakhtin, oferece a estrutura mais robusta. Nesse modelo, Deus não é um autor monológico que controla marionetes, mas um autor que cria “seres respondentes” genuínos e dialoga com eles. Isso permite a existência de liberdade moral e responsabilidade dentro da narrativa soberanamente escrita por Deus. A analogia ajuda a esclarecer doutrinas complexas como o extra Calvinisticum (a natureza divina de Cristo que transcende a encarnação) e a presciência divina (Deus vendo a história como um autor folheia seu livro).
Para responder à objeção de que essa analogia torna Deus o autor do pecado, Settecase utiliza a teoria do “Controle de Direcionamento” e distingue entre “causalidade alfa” (a autoria de Deus) e “causalidade beta” (as ações e razões dos personagens dentro da história). Deus não coage ou manipula, mas interage com a natureza de suas criaturas, como no endurecimento do coração de Faraó, que ocorre através da apresentação da bondade de Deus a um caráter já arrogante. Em resposta ao mal aparentemente gratuito e à negligência divina, Settecase recorre ao “teísmo cético”, enfatizando a humildade intelectual, pois apenas o autor, com sua “exterioridade”, conhece o propósito de cada elemento da trama. A conclusão culmina na Cruz como a “eucatástrofe” máxima: Deus transformou o pior mal imaginável — o assassinato do autor que entrou em sua própria história — no maior bem possível, a redenção, fornecendo esperança de que todo sofrimento pode ser, em última instância, redimido.
1. Introdução à Analogia “Deus como Autor”
A analogia de “Deus como Autor” postula que a relação entre Deus e o mundo pode ser compreendida como a de um autor com seu romance. Esta ideia é o cerne da tese de mestrado de Parker Settecase, orientada pelo teólogo Kevin Vanhooser na Trinity Evangelical Divinity School.
- Tese de Mestrado: Intitulada Contending with the Divine Writer’s Block: VanHooser’s Author Analogy and the Problem of Authoring Evil, o trabalho de Settecase visa defender essa analogia contra a crítica de que ela tornaria Deus moralmente responsável pelo mal.
- Influências: Settecase foi influenciado por vários teólogos e pensadores que utilizaram essa imagem, incluindo John Frame, C.S. Lewis (no ensaio “The Seeing Eye”), Dorothy Sayers e James Anderson. No entanto, ele considera o modelo de Kevin Vanhooser, detalhado em seu livro Remythologizing Theology, como o mais sofisticado e defensável.
- Teodiceia vs. Defesa: Settecase distingue seu projeto como uma teodiceia, que é uma tentativa de fornecer uma explicação positiva e plausível para a existência do mal, em contraste com uma defesa, que busca apenas demonstrar que a existência de Deus e do mal não são logicamente contraditórias.
2. A Justificativa para o Uso de Analogias na Teologia
A discussão aborda a validade de usar analogias criadas pelo homem para descrever Deus, uma prática que alguns críticos consideram inapropriada ou idólatra.
- Analogias Inspiradas vs. Extra-Bíblicas: A primeira defesa é que a própria Escritura usa analogias, como “Deus Pai”. Embora a paternidade divina não seja univocamente idêntica à paternidade humana, é uma analogia literal e inspirada. A objeção, então, se volta para analogias extra-bíblicas, como “Deus como Autor”.
- O Papel da Teologia Sistemática: Settecase argumenta que a teologia sistemática inerentemente usa analogias para “empacotar” e sintetizar os fenômenos das Escrituras. O critério para uma boa analogia não é se ela é explicitamente bíblica, mas se ela “segue o veio do texto bíblico” e faz justiça aos dados revelados.
- Literalidade e Univocidade: Uma analogia pode ser literal sem ser unívoca. Ou seja, ela fala de forma verdadeira sobre Deus, mas o sentido da palavra (ex: “autor”) é estendido para se ajustar à realidade divina, que é diferente da humana. Deus “cria” com o tempo e o espaço; um autor humano cria com tinta e papel ou pixels.
3. Aplicações e Benefícios Teológicos da Analogia
A analogia de “Deus como Autor” oferece clareza para várias doutrinas teológicas complexas.
3.1 Relação de Deus com o Tempo
A analogia ajuda a conceituar a presciência divina e a eternidade de Deus de uma maneira que contorna problemas filosóficos comuns.
- Presciência como Visão Total: Assim como Tolkien pode folhear as páginas de seu livro, vendo o início e o fim simultaneamente, Deus não “pré-conhece” os eventos em uma linha temporal como nós. Ele os vê de sua perspectiva atemporal ou de um nível diferente de temporalidade, o “eterno agora” (Boécio).
- Diferentes Níveis de Realidade: O tempo do autor e o tempo dos personagens operam em níveis distintos. Enquanto Tolkien vai ao banheiro, Frodo não fica congelado na história. Da mesma forma, Deus opera em um plano de tempo diferente do nosso.
- Utilidade Ecumênica: Esta aplicação da analogia é útil para diferentes tradições teológicas, sendo usada tanto por calvinistas quanto por não calvinistas como C.S. Lewis e Dorothy Sayers.
3.2 A Encarnação
A imagem de um autor entrando em sua própria história ilumina profundamente o mistério da encarnação de Cristo.
- O Autor na História: A encarnação é como o autor que entra em sua própria narrativa. Isso ecoa João 1, onde “o mundo foi feito por ele, mas o mundo não o conheceu”.
- O Extra Calvinisticum: A analogia ajuda a explicar como a segunda pessoa da Trindade pôde continuar sustentando o universo (Hebreus 1:3) enquanto estava encarnado como um bebê. Assim como Tolkien, ao se escrever na história, não deixa de existir em Oxford, a natureza divina do Filho não foi contida ou limitada por sua natureza humana.
- Milagres como Atos de Fala: Os milagres de Cristo, como acalmar a tempestade com uma palavra (“Aquiete-se”), são paralelos à forma como um autor cria e molda sua narrativa: através de atos de fala.
- Limitações de Cristo: Ajuda a entender como Cristo podia ser onisciente em sua natureza divina, mas não saber o dia de seu retorno em sua natureza humana. O autor, ao entrar na história como um personagem, pode escolher não dar a esse personagem todo o seu conhecimento extranarrativo.
4. Defendendo a Analogia Contra o “Problema da Autoria do Mal”
A objeção mais séria é que, se Deus é o autor de tudo, Ele também é o autor do pecado, o que contradiz a natureza de Deus revelada nas Escrituras.
4.1 O Modelo de Autoria Dialógica de Vanhooser
Settecase argumenta que o modelo de Kevin Vanhooser, baseado nos tipos literários de Mikhail Bakhtin, é a chave para resolver essa questão. Vanhooser distingue três tipos de autoria:
| Tipo de Autoria | Descrição | Exemplo Literário | Implicação Teológica |
| Monológica | Uma única voz domina. Os personagens são meros porta-vozes do autor. | Tolstói | Deus seria um titereiro; as criaturas não teriam responsabilidade moral genuína. |
| Polifonia Radical | Múltiplas vozes em cacofonia. O autor perde o controle sobre os personagens. | (Não mencionado) | Levaria ao teísmo de processo, onde Deus não é soberano sobre a criação. |
| Polifonia Dialógica | Múltiplas vozes genuínas em diálogo. O autor cria personagens respondentes e pode entrar na história para dialogar com eles. | Dostoievski | O modelo de Vanhooser. Deus cria seres genuinamente livres e responsáveis com quem Ele interage, em vez de controlá-los como marionetes. |
Nesse modelo dialógico, Deus não nos força a agir contra nossa natureza, mas nos forma através de um diálogo contínuo ao longo de nossas vidas.
4.2 Responsabilidade Moral e Controle de Direcionamento
Para explicar como a soberania de Deus (autoria) e a responsabilidade humana (personagem) coexistem, Settecase emprega conceitos da filosofia analítica.
- O Desafio da Culpabilidade: Se Deus determina tudo, como nossas ações e crenças podem ser genuinamente “nossas”? A culpabilidade parece recair totalmente sobre Deus.
- Dois Níveis de Realidade: Ações dentro da narrativa têm consequências diferentes das ações do autor fora dela. Tolkien não seria preso pelo assassinato que Smeagol cometeu.
- Controle de Direcionamento (Guidance Control): Uma teoria da liberdade compatibilista (de Fischer e Ravizza) que afirma que a responsabilidade moral requer duas condições:
- Responsividade às Razões: O agente é capaz de responder às razões para agir.
- Propriedade do Mecanismo: O mecanismo de raciocínio do agente não foi coagido ou manipulado externamente (ex: um chip no cérebro).
- Aplicação à Teologia: Deus determina nossas ações, mas não através de coerção que contorna nossas faculdades. Ele nos apresenta razões e circunstâncias, sabendo como nossa natureza (que Ele mesmo formou) responderá. Smeagol tinha suas próprias razões narrativas para matar Deagol.
- Estudo de Caso: Faraó: Deus endureceu o coração de Faraó não ao “agarrá-lo e endurecê-lo”, mas ao apresentar Sua bondade e misericórdia a um homem cujo caráter arrogante e rebelde responderia com ainda mais teimosia. A ação de Deus foi boa; a resposta de Faraó foi má, mas consistente com seu caráter.
5. Questões Adicionais: Negligência Divina e Mal Gratuito
A discussão também aborda o problema do mal natural pré-humano e a aparente inação de Deus diante do sofrimento.
- O Argumento da Negligência: Philip Clayton argumenta que um Deus pessoal que não intervém mais para impedir o sofrimento tem um “histórico moralmente abismal”. Isso se conecta ao problema do mal gratuito (William Rowe), como o sofrimento de um cervo morrendo lentamente em um incêndio florestal, que parece não ter nenhum propósito.
- A Resposta do Teísmo Cético: A resposta de Settecase se baseia na humildade epistêmica.
- Falta de “Exterioridade”: Nós, como personagens, não temos a perspectiva externa do autor. Não estamos em posição de declarar que um evento de sofrimento “não se encaixa na história” ou não tem um propósito maior. Para saber isso, teríamos que ser o autor.
- O Propósito Último do Mal: O maior propósito que o sofrimento pode servir é a revelação mais completa de Deus. Sem a queda e o mal, não veríamos a plenitude dos atributos de Deus como redentor, misericordioso e justo.
- A Necessidade da Humildade: A falta de humildade diante desse mistério pode levar a uma teologia “castrada”, onde os aspectos difíceis da soberania de Deus são removidos para tornar Deus mais compreensível, mas menos fiel à revelação.
6. Conclusão: A Eucatástrofe e a Esperança Cristã
A resposta final ao problema do mal, dentro da analogia do autor, é a promessa de uma “eucatástrofe” (termo de Tolkien para uma “boa catástrofe”).
- A Cruz como a Eucatástrofe Suprema: O evento da crucificação representa o pior mal possível: a criatura assassinando seu criador, o autor que entrou em sua própria história. No entanto, Deus usou esse ato de maldade máxima para realizar o maior bem possível: a salvação do mundo e a redenção de todas as coisas.
- A Esperança na Redenção: A cruz demonstra que Deus é o tipo de autor que pode transformar a mais profunda tragédia na mais gloriosa vitória. Se Ele pôde fazer isso com o pior mal, Ele pode fazer isso com os males menores que enfrentamos. Isso fornece uma base sólida para a esperança de que, no final da história (o escaton), todo mal será desfeito e todo sofrimento encontrará seu propósito redentor. A história que vivemos, com seus sofrimentos, é um eco da Grande História que termina em vitória e alegria.